Resenha sobre a Reportagem da revista Superinteressante¹ de 1990
É complicado se trabalhar com certas áreas históricas em vista da pouca quantidade de dados que tais garantem aos seus pesquisadores. A Filologia, ainda que seja uma ciência inteiramente voltada para a linguagem, se envolve com a História tal como se envolve com outras ciências, como a Psicologia e a Antropologia. Para tanto, sabe-se que documentos oficiais, principal objeto de estudos, perderam-se com o tempo de acordo com as situações em que se envolviam. Pensando desta forma, consegue-se entender o quanto complicada é a busca pela árvore genealógica que muitas vezes a Filologia se presta com o apoio da Linguística Histórica.
Um dos trabalhos da Linguística do século passado, o mais importante de todos eles, era encontrar a mãe das línguas, ou pelo menos algum parentesco, através da comparação entre línguas semelhantes. Desta forma descobriram-se as línguas românicas, isto é, línguas que possuem uma mesma raiz comum: o latim. Bem como outras famílias linguísticas surgiram na medida em que as comparações ganhavam concretude. As “proto-famílias” (por que não dizer “as superfamílias”) também se tornaram alvos para os linguistas a partir do momento que eles perceberam que as famílias linguísticas possuíam certo grau de semelhança, ao se observarem certos grupos de vocábulos e seus significados. Talvez umas das ânsias dos linguistas fosse comprovar o mito da Torre de Babel, em que todos os homens falavam a mesma língua e, para demonstrar a superioridade humana, criaram uma torre que pudesse alcançar o céu. Deus, para “castigar” a pretensão do homem, destruiu a torre e com ela a língua original, fazendo com todos os homens passassem a falar línguas diferentes. Mas surge o questionamento: qual o interesse da Filologia nessa investigação histórica?
Realmente é uma pergunta pertinente e a resposta é ainda mais pertinente. Para uma ciência que estuda a cultura e o comportamento dos povos através dos escritos deixados por eles, seria bastante conveniente conhecer a origem de todas as línguas, por mais utópico que possa parecer. O ato de conhecer a gênesis linguística ajuda o filólogo a entender os processos culturais que modificaram e distanciaram, ou não, a língua-mãe de suas “filhas e netas”. No entanto, há um porém, talvez o mais sutil e definidor de todos: muitas vezes as evidências genealógicas entre línguas remotamente aparentadas são escassas, ou seja, os linguísticas históricos se valem de algumas poucas palavras na busca do sang’real, isto é, o sangue real. Sabe-se que do contato de uma língua com outra, pode ocorrer da primeira tomar para si expressões da segunda e vice-versa. Qual seria a prova, então, de que ambas são parentes? Nem sempre a semelhança de alguns vocábulos indicará um verdadeiro grau de parentesco.
A reportagem publicada na revista Superinteressante, intitulada “Antes da Torre de Babel” vem relatar tais constatações já abordadas ao longo do texto. No terceiro parágrafo, na seção Português é aparentado até com o sânscrito, é relatado: [...] “3 mil línguas espalhadas pelos quatro cantos do mundo. Essas, mais outras milhares já esquecidas que deixaram algum tipo de registro escrito, foram agrupadas em doze² famílias linguísticas importantes e cinquenta menos importantes.” Nesse pequeno trecho, mas bastante esclarecedor, nota-se o nível de dificuldade que linguistas históricos de todo o mundo enfrentam ao longo de seus estudos. Se supusermos que cada língua possui em torno de 5.000 verbetes, cada qual com seus significados e etimologias próprias, teremos 15.000.000 milhões de palavras oficialmente catalogadas para serem comparadas, sem estar levando em conta os dialetos e as línguas ditas mortas³ (a exemplo o latim).
Tamanho trabalho árduo gera frutos mínimos observando tais números, mesmo que supostos. Comparar línguas, encontrar nelas reminiscências de outra, e nesta se deparar com resquícios, e para fim encontrar nestes sopros ou ecos de um passado de difícil acesso de uma língua. É de semelhante dificuldade que os paleontólogos partilham ao encontrarem o osso da ponta da cauda de um gigantesco brontossauro (um dos dinossauros de maior comprimento de que se tem notícia).
Na reportagem mencionada, logo de cara nos deparamos com um fato comprovado: essa investigação não é algo oriundo dos tempos modernos. Bem antes do nascimento de Cristo, um faraó já refletia sobre a língua dos homens. As mais bizarras experiências foram feitas para tentar descobrir qual era a língua dos primórdios. Bebês eram criados sem nenhum contato social e verbal, se preciso fosse o suprimento alimentício seria cortado para que eles fossem instigados a usar a língua original. No entanto, ao que consta, foi um fiasco. Mas o desejo de descobrir a “avó” de todas as mães de todas as línguas resistiu ao tempo e as experiências com crianças. Chegou aos tempos modernos e com eles encontrou novos meios de estudar as similaridades que as línguas tinham entre si, assim dando início a Linguística Histórica e realçando os interesses da Filologia.
Um dos pontos que ponho em cheque nesse momento final do texto, talvez culminante para toda a minha argumentação, são os justos exemplos dados ao fim da reportagem. Aqui cito o parágrafo:
Uma delas é a incrível semelhança de palavras entre as línguas indígenas da América pré-colombiana e idiomas falados pelos povos do Mediterrâneo e Oriente Médio. Por exemplo, os índios araucanos do Chile usam a mesma palavra que os antigos egípcios, anta, para designar o Sol e a mesma palavra que os antigos sumérios, bal, para machado. A palavra araucana para cidade é kar, semelhante a cidade em fenício, que é kart. (SUPERINTERESSANTE, pg.??, 1990)
Os linguistas, bem como os filólogos, trabalham com muito pouco para dizer tanto. Não afirmo que seja um trabalho em vão, que tais estudos não levarão a lugar algum, no entanto já se percebeu que as famílias e as proto-famílias não são realmente línguas concretas: na verdade são suposições das originais, posto que não haja documentos escritos em tais línguas. É preciso tomar cuidado, pois uma língua possuir palavras semelhantes, ou de mesmos significados, ou mesmo idênticas a outras não significará propriamente que sejam irmãs, primas, netas, filhas ou mães.
¹ Número da revista não identificado, bem como o mês de publicação
²No texto original se encontra “dose”, mas para ajudar na compreensão a correção foi feita.
³Uma língua morta não significa que não é mais usada. Na verdade é uma língua que não é mais falada pelo povo.